sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

The Story of India




Um interesse pela Índia, surgido através de um projeto em que estou trabalhando, me levou a série da BBC, The Story of India.

É engraçado como os cineastas brasileiros têm aversão a utilização de um narrador no documentário, seja em voz off, ou em corpo presente mesmo. No primeiro caso creio que se trate de uma reação de auto-defesa a uma debilidade histórica do cinema nacional em fazer um bom filme com uma locução criativa, inteligente, ou poética, restringindo-se à descrição ou mesmo ao comentário pessoal do autor, em sua própria voz. Não temos no cinema nacional, ou na televisão, o tipo de narração que se vê em Nuit et Brouillard, escrito por um poeta (Jean Cayrol) e interpretado pelo trabalho cuidadoso de um grande ator (Michel Bouquet), se assim o fosse, ia ser mais difícil falar mal desse tipo de instrumento narrativo em terras tupiniquins.

Já a interferência de um narrador em corpo presente é a autêntica utilização do intermediário entre nós e o que é mostrado, e tende a se aproximar perigosamente do tele-jornalismo ao estilo americano, que o brasileiro copia fielmente. Bem, o formato de série documental da BBC se afasta disso quando se utiliza do especialista, daquele que conhece a fundo o que está sendo mostrado. Não é o documentário investigativo, onde o condutor sabe tanto quanto nós e, aparentemente, fica sabendo mais sobre o assunto no mesmo momento em que nós. Uma mistura dos dois é o modelo do Globo Repórter. No caso das séries da BBC e The Story of India seria uma caso exemplar, somos levados por alguém que conhece tudo antes de chegar lá, já leu, já sabe, suas descobertas acabam residindo nos detalhes, ou apenas na visualização da realidade que sua pesquisa da história havia mostrado.

Digo que The Story of India "seria" um caso clássico do tipo de série que a BBC produz para a TV porque ele é o bom resultado, eu diria até excelente, de uma fórmula que o canal de televisão britânico tenta replicar, só que é neste ponto que há diferenciações, pois na verdade, muito do resultado desse modelo, acaba na aplicação de uma receita, que termina em um bolo de fubá comum, daqueles que se encontra nas prateleiras de qualquer padaria. Nisso, The Story of India é diferente.



O que torna a série interessante são sua atualidade, a Índia, assim como o Brasil, desperta a curiosidade do mundo por fazer parte de um grupo que se torna cada vez mais protagonista no cenário mundial; pelo exotismo, e as imagens são luxuriantes, é impossível não ter o desejo de estar naqueles locais; o aspecto pessoal da produção, e isso pode ser confirmado olhando-se os créditos, onde se vê que o narrador é responsável pelo texto que fala, e o diretor opera a câmera, enquanto a equipe, excetuando-se cenas específicas, parece se resumir quase inteiramente à três pessoas, em pelo menos dois momentos vemos o próprio narrador ajudar a levar equipamento; e por último, a forma apaixonante, presente em todos os episódios da série, com que Michael Wood narra toda a sua viagem pela Índia. Não se trata de um simples apresentador, mas você vê realmente a emoção surgir nele, seja a da curiosidade, a do espanto, ou a tristeza. No final do primeiro episódio o vemos se misturar a multidão na festa das cores, onde as pessoas jogam pó colorido uns nos outros e ele participa da festa. Alegre, tomado pela emoção, sujo de tinta no fim de um dia na Índia, ele olha para a câmera e suspira feliz dizendo “e é apenas o começo”. Não consigo deixar de pensar que ali ele deixou dúbio se falou ao espectador, ou à pequena equipe atrás da câmera, em uma confissão da aventura que se é fazer um documentário, como se dissesse: “Deu certo, estamos rodando o projeto que sonhamos fazer, mais um que a gente consegue, e olha, ESTAMOS NA ÍNDIA!”.



Fazer documentário, definitivamente, é uma aventura e um prazer.

domingo, 2 de dezembro de 2012

Os Limites da Internet


Há um tempo atrás quando pela primeira vez ouvi falar em internet, me parecia ser algo que viria para substituir os correios. Acho que ninguém, nem de longe, imaginava a transformação que estava para ocorrer. Marc Andreessen, criador do Netscape, e o maior responsável pela explosão desse novo meio de comunicação, disse em sua última entrevista a revista Wired, que desde o início previa o que ia acontecer. Impossível. Se fosse previsível mesmo, ele próprio teria criado Google, Facebook e milhares centenas de outros negócios inovadores que aconteceram na rede mundial.

Por que “centenas” e não “milhares” de negócios? Na mesma edição da revista Wired, Marc fala algo interessante: ele estranha quando anda de carro pelo Vale do Silício e vê os prédios das empresas instaladas por lá. Acha que são poucas. Acredita que com o potencial possível da rede para fazer negócios, deveria haver um número muito maior de empresas.
Confesso que quando li a entrevista achei o cara petulante. A internet não é uma conquista incrível? Já não há um número enorme de negócios sendo feitos graças a ela? Eu mesmo tenho dois sites na internet, página em duas redes sociais, conta em diversos aplicativos de comunicação, e isso me ajuda a fazer um enorme número de negócios. O número de reuniões que já tive via Skype, Facebook e outros foram incontáveis. Recentemente até abri conta no Paypal para receber uma grana com a venda de uns trabalhos. Mas tenho que confessar que de um tempinho para cá bati em alguns limites na internet.

YOUTUBE 01

Tudo começou há uns quatro meses atrás quando postei uns vídeos no YOUTUBE. Pouco tempo depois de postar, observei uma dificuldade de encontrar os vídeos pelo sistema de busca do site. Quando digitava as palavras encontrava material que tinha o mesmo gênero e perfil do material que tinha postado, mas não da mesma qualidade. O que me chamou à atenção naquele momento foi o número incrível de visualizações dos vídeos que apareciam na busca. Tenho que dizer que me encantei com a possibilidade de que meus vídeos alcançassem o mesmo público e a partir daí me empenhei em sua divulgação.

FACEBOOK

Postei os vídeos nas redes sociais do público alvo, e me associei a grupos que chegavam a reunir 40.000 associados. Resultado: quatro curtiam. De repente bati no primeiro limite. O FACEBOOK e sua linha de tempo, onde surgem as postagens, parecem ser um grande tudo do nada, ou vice-versa, não sei bem. Aquilo que você posta parece que tem que ser curtido pelo maior número de pessoas em poucos minutos, caso contrário some debaixo de outro milhão de postagens subsequentes. Senti o óbvio. FACEBOOK é a página do EU e um EU temporário, fumegante, extremamente fugaz. De repente entendi porque muitas empresas começaram a acreditar que o FB não era assim um negócio tão bom. A razão para isso acontecer era justamente a razão do sucesso da rede social: quando as pessoas entram ali estão em busca de encontrar com os amigos e falar de si, não de comprar produtos. Se alguém está interessado em comprar um produto, busca uma loja virtual, um site de comparação de preços, um site de leilões, de anúncios, ou mesmo o próprio site de buscas. No caso de empresas, o FACEBOOK parece ser muito mais um processo de valorização de marcas, o tal CURTIR, do que um local apropriado para o comércio, ou mesmo a publicidade, e enquanto escrevo isso uma amiga me diz que ela aparece tendo CURTIDO páginas de produtos que nunca curtiu. É o FB tentando valorizar a marca de seus anunciantes NA MARRA.

Há outras coisas interessantes: encontrei um site na rede social que tinha mais de 40.000 pessoas acompanhando suas postagens, pelo menos é o que aparecia escrito lá, mas quando ia para as postagens, a média de CURTIDAS variava entre os 400 e 500, e quando havia uma proposta de venda de um produto, com o link indicando onde comprar, aí o número de pessoas que curtiam caía para 37 pessoas. Isso faz pensar, não é? De 40.000 possíveis clientes, para efetivos 37... (Isso equivaleria a 0,0925% do tal potencial!) Mas aí é que está! Não acredito que o potencial fosse 40.000 clientes. Acho que o potencial eram os habituais 400, 500, que curtiam as postagens ocasionalmente. O que aconteceu com os outros 39.500? Ora, não acessaram a internet no dia e na hora em que a postagem de venda foi oferecida. Quando abriram seu perfil, a postagem já não estava mais ali, havia sido engolida por milhares de outras, ou quando entraram estavam mais interessadas em postar seu próprio conteúdo, ver o que os mais chegados haviam postado, do que comprar produtos. Bem, desisti de fazer a divulgação dos vídeos no FACEBOOK.

YOUTUBE 02

Voltei ao YOUTUBE e aos vídeos que tinha assistido antes e que faziam milhões de visualizações. Simplesmente não compreendia. ERAM MUITO RUINS e estavam sendo vistos por milhões, enquanto meus vídeos tinham alcançado a marca de apenas 17 visualizações. Era engraçado. Os vídeos tinham o mesmo perfil e os meus eram melhores. A razão estaria em um fato simples: o próprio YOUTUBE é uma rede social. Óbvio, não é? Nem tanto, confesso que até aquele momento tinha o visto apenas como um local onde se guarda e procura conteúdo audiovisual. Uma coisa interessante é que quando você usa o motor de busca do YOUTUBE ele dá privilégio aqueles vídeos mais vistos, mas quando você clica em um deles aparece um cardápio de outros vídeos assemelhados. Comecei então a tentar integrar o meu canal ao canal daqueles vídeos de “sucesso”. Tentar me linkar de alguma maneira. Percebi que vários outros tentavam fazer o mesmo e igualmente sem sucesso. Percebi que motor de busca do YOUTUBE valoriza os vídeos mais vistos e que muitas vezes os mais vistos eram aqueles que estavam há mais tempo postados no site e não necessariamente os melhores. O cardápio que a página mostra quando você clica em um dos vídeos não foge do padrão, são os vídeos mais vistos e havia clara relação com o tempo em que estavam postados.

A coisa ficou mais interessante quando eu mudei as preferências de busca, algo que o usuário tem que fazer de forma consciente, pedindo priorização de vídeos mais recentemente postados. Para mim, a surpresa foi ver MAIS DO MESMO. Não eram os mesmos vídeos, eram outros, mas eram extremamente assemelhados aos do primeiro sistema de busca. Percebi que o motor de busca do YOUTUBE me oferecia os vídeos mais recentes postados por aquelas pessoas que postaram os vídeos mais vistos! O motor de busca do YOUTUBE valorizava aqueles vídeos de usuários que há mais tempo postam, sem a menor relação com qualidade, ou inovação. É simplesmente um algoritmo de busca que te leva a ver MAIS DO MESMO DE QUEM CHEGOU PRIMEIRO!!! Bem, ainda tenho alguns vídeos postados no meu canal, mas tirei de lá todos os vídeos em que estava tentando a experiência. Poucos dias depois uma amiga me mandou um vídeo que ela colocou no YOUTUBE. Tinha mais de 130.000 visualizações. Era uma aula de dança, uma música de sucesso coreografada por ela. Pelo que ela me disse, ao que parece, toda vida que alguém coloca o título da música e a palavra “coreografia” junto, vai bater no vídeo dela. INEVITAVELMENTE! Qual a diferença entre meus vídeos e os dela? É que as palavras de busca usadas no site já estão linkadas em definitivo aqueles mesmos vídeos. Isso não acontece às palavras chaves que ela usou. Daqui há alguns anos, muita gente talvez ainda digite as mesmas palavras e pode ser que hajam mais vídeos relacionados, mais novos, mas a minha amiga sempre vai aparecer na frente, porque ela chegou primeiro. De 20 dias atrás, quando ela me mandou o link até agora, o vídeo pulou para 150.000. 1.000 visualizações por dia e ela colocou para monetizar.

CONTINUA...

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Assistindo Documentários

Esses últimos quatro dias me entreguei a assistir documentários. Não qualquer forma de documentário, mas séries documentais. No Brasil a crítica os desconsidera, talvez por não ser um estilo a que os melhores realizadores brasileiros se dedicaram, mas também, suspeito eu, por estar intimamente ligado à televisão. Bem, já produzi para televisão antes e estou louco para voltar a fazer, na verdade é algo em que estou realmente empenhado no momento e daí a decisão em assistir série de docs.

Cabe aqui uma explicação, sou produtor independente, não trabalho ligado a um canal de TV, a uma empresa, meu trabalho reside em oferecer material, algo que o canal ache interessante, tenha o perfil de seu público e queira veicular, às vezes comprando, às vezes como sócio, então não tenho um chefe, não bato cartão, cumpro um acordo, um contrato para a entrega de uma determinada obra.

O prazer em se fazer televisão, para um profissional como eu, reside no enorme número de horas com que se trabalha e na velocidade com que se tem de fazê-lo. Pode parecer louco alguém dizer que é melhor porque se trabalha mais, com menos tempo, mas quando se faz um filme, aquilo te prende, é meio como um casamento, ou um filho, digamos que produzir para televisão é como um romance de verão. Bem, talvez eu esteja sendo poético demais. O caso é que se produz muitas horas de material dentro de um tempo menor e as decisões criativas tem que ser tomadas mais rápidas, o que não significa pior qualidade criativa. Nesse caso, a melhor comparação que posso fazer é como se jogasse xadrez com timer. É mais atenção, mais adrenalina.

Voltando às series de TV, resolvi pesquisar quais séries de documentários são conhecidas como as melhores produzidas e tentei assisti-las, ver o formato, as qualidades e defeitos. Selecionei três séries:

·         Civilisation: A Personal View by Kenneth Clark
·         The Undersea World of Jacques Cousteau
·         The Civil War, a film by Ken Burns.

Uma série de apreciação a arte, outra voltada ao mundo natural, que as pessoas com mais de trinta anos devem se lembrar bem, e uma histórica. A essas juntei uma mais recente, que não está listada entre as melhores já feitas, mas que tenho assistido também com prazer:

·         The Story of India.

Vou comentar sobre cada série em uma postagem individual, mas claro, algo bem visível em todas elas, assim como em todas as séries para televisão, é o peso maior no conteúdo do que na forma. Não acho que isso desmerece as obras por si mesmas, mas a ideia aqui é analisar a forma com o conteúdo e a abordagem deste.

domingo, 1 de julho de 2012



Após o vôo cancelado, o quarto do hotel reservado para mim era o que eu esperava. Duas camas king size, banheira de primeira e preços do cardápio na estratosfera. Depois de aproveitar o banho fui direto para TV. Passando rápido pelos canais você percebe quando alcança a PBS, a televisão pública americana. Já tinha percebido isso outras vezes. Enquanto a gente vê o Tom Cruise pulando num sofá feito um idiota num outro canal, aqui ele participa de um talk show falando sobre a construção do personagem no filme do Kubrick. Naquele momento estavam entrevistando jovens atores de Hollywood com uma profundidade que eu não imaginava que aquelas pessoas tinham. Eram duas horas da manhã e mudei o canal mais uma vez. Alcancei a NHK, que estava passando uma série de documentários sobre lugares inóspitos. Na manhã seguinte liguei a TV de novo na PBS. Passava uma série documental. Um cara tentava descobrir a origem de um objeto, no caso, duas placas metálicas para reprodução em série de uma partitura de TAKE A TRAIN, de Duke Ellington. Tentando descobrir a origem daquele objeto o detetive conversava com especialistas, museólogos, e músicos. O objeto nos levava a uma viagem pela história da música americana, pelo bairro negro do Harlem, pelas linhas de metrô de Nova York e por projetos sociais que mantêm essa cultura viva, enquanto estávamos presos a estrutura de uma investigação policial. Eu estava assistindo a um puta documentário televisivo com força para segurar um espectador mediano e terminava com o dono das placas descobrindo que elas eram usadas para tocar uma versão para piano-solo da música (as pessoas tinham pianos em casa antigamente) e pode ter sido arranjada pelo próprio Ellington, para ganhar uma graninha a mais, ou por uma pessoa não identificada, uma versão antiga da pirataria musical de hoje. Terminado o episódio o programa convidava o espectador a enviar email ao programa propondo uma nova investigação sobre objeto que tivesse em casa. Mudei de canal e bati na HBO passando um documentário incrível “FIRE AND ICE”, sobre a profunda rivalidade e amizade entre dois mitos do esporte, John McEnroe e Björn Borg. Esse é provavelmente um dos melhores documentários que já assisti. Depois disso me vesti e fui ao aeroporto antes que perdesse o vôo assistindo documentários viciantes.




Fiquei pensando, por que temos uma TV pública tão desinteressante? É difícil assim? No domingo às 7 da noite passa o Faustão, o Silvio Santos e a alternativa da principal TV pública brasileira é um programa de debates sobre a maternidade. Nada contra, mas programa para mães no domingo à noite?


domingo, 28 de agosto de 2011

Miles Davis e o Tempo.

A sensação de visitar a Exposição sobre Miles Davis, no CCBB do Rio, é algo próximo a se assistir a um filme com a tecla Fast Foward apertada, acompanhada de uma excelente trilha sonora. Na verdade a mostra não evidencia nada de novo na vida do músico americano. Nada que já não possa ser lido, por exemplo, na Wikipédia. Estão lá as vicissitudes do músico que se apegava a toda moda que passava, por mais transitória que fosse, seu apego ao dinheiro trazido pela fama, o uso das drogas e seu cinismo bem característico. Apesar disso tudo, em cada sala da exposição, a cada curva e moda em sua carreira, pessoalmente, e contrário aos puristas do Jazz, vi talento em maior ou menor grau, talvez muito menos na fase final, em que se coloca como uma espécie de Pop-Jazz da cultura negra americana, tentando uma igualdade com nomes como Prince ou Michael Jackson. No que concerne a Miles Davis mesmo, o que senti falta na exposição foi à referência ao relacionamento com outros músicos, muitos o consideravam um mau caráter de ordem maior. Nesse sentido, a exposição não entra. Teria sido organizada por um fã mais cego em idolatria, ou a própria presença de objetos importantes, como vários trompetes pertencidos ao músico, exigiu da curadoria uma maior diplomacia quanto à imagem do artista? Lembro-me de uma troca de farpas com o mais contemporâneo Wynton Marsalis, que Miles acusou de ser um jovem querendo ser velho. Marsalis retrucou que Miles era um velho querendo ser um jovem. Para mim, os dois estavam com razão. Parece que só vejo aspectos negativos em Miles, não é? Mas há a música... E a música dele é uma das melhores coisas que o século XX deixou.

O interesse na exposição está na passagem do tempo e como ele se reflete na vida do ser humano, e como nossas opções em cada momento, em cada fase, refletem em nossa personalidade. Esse pensamento ficou muito forte em mim e acho que fica muito forte em cada pessoa que visita a exposição, porque Miles Davis tinha uma relação muito especial com o tempo e a época em que vivia. Não creio que para Miles Davis houve uma época dourada, ou se ele sentia isso, deveria ser muito incidentalmente. Foram 65 anos vividos em conjugação constante do tempo presente e apesar disso, não tenho a impressão que sua essência como ser humano, boa ou má, tenha mudado radicalmente. Mesmo que diante da jaqueta vermelha que vestia nos anos 80, possa se ter a ideia que muito se tenha mudado desde os bem cortados paletós dos anos 40, para mim, sua natureza parece ter se mantido. Tudo registrado em fotografias e músicas. Tenho essa visão porque creio que os modismos dele estão além do interesse exclusivo monetário, evidenciado nas trocas de cartas com os executivos das gravadoras, mas numa necessidade contínua que sempre teve de influenciar continuamente a cultura americana, algo que sem dúvida, conseguiu.

domingo, 10 de julho de 2011

Gracias Segovia!



Há pouco mais de um mês conheci Andrés Segovia. Qual a coisa boa de viver? Descobrir coisas como essas. A vida é cheia de surpresas e na curva da esquina pode haver um bom novo achado.

Andrés Segovia, aos quatro anos, dedilhava um instrumento invisível. Fingia que tocava um violão, ou guitarra, como chamam os espanhóis, que não existia. Tornou-se um grande instrumentista, apesar da oposição cerrada da família. No início, o instrumento não servia para o concerto, era algo popular, usado por ciganos. Segovia o colocou nos palcos. Tocava com uma técnica que colocava as cordas entre os dedos e a carne, criando timbres próprios. Fiz o teste, ouvi a mesma composição tocada por outros instrumentistas. De olhos fechados, um leigo como eu, consegue definir quando é ele que está tocando.

Postei dois vídeos dele aqui. Dá para ver a técnica e sentir a sonoridade única, mas dá para ver outra coisa também, o homem de idade sobre o instrumento. Um amigo músico me disse como é engraçado vê-lo tocando, pois parece ser muito fácil, quando na verdade não é. Voltei a assisti-lo e percebi que quando toca, seu olhar para as mãos não dá pistas qual será o próximo movimento, não indica, não antecede. Segovia olha para as mãos como se as acompanhasse e não como se as comandasse. Aquelas mãos gordas de dedos dobrados têm vida própria e daí vejo outra coisa: amor. Olhando bem, vejo amor, amor pela arte, amor pelo instrumento, um amor sem palavras, sem o “eu te amo” e talvez por isso mesmo um amor mais franco, compromisso descompromissado, doação, e o que se tem em troca? Fama? Dinheiro? Não, apenas a chance de tocar de novo, mais uma vez. Isso acaba sendo uma ética, uma ética da arte. Segovia me lembra que a recompensa, a verdadeira, está em continuar fazendo o que se ama.

Para quem descobriu essa publicação na caótica rede, uma sugestão: na coleção SEGOVIA COLLECTION ele toca com orquestra Fantasia para um Gentil Hombre. Ouvir, para mim, foi daquelas experiências de fazer voar.

Gracias Segovia!

http://youtu.be/tZtrN4q9sMA

http://youtu.be/2eBnfzngq9Y

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

A Iluminura, o Califa e o Cinema.



Ontem, eu e Glauber Nocrato, o músico dos meus últimos dois filmes, demos um passeio pela exposição Islã, no Centro cultural Banco do Brasil. Após frisos, pratarias e tapetes, demos de cara com a seção dedicada à caligrafia.

Belíssima a caligrafia islâmica, algo que a cultura oriental soube usar como arte e que para nós é apenas a funcionalidade das letras. Nosso olhar caiu de imediato sobre uma edição do Corão de séculos atrás, não essa da imagem acima, mas uma até mais bonita, totalmente feita à mão, de muito antes da invenção da tipografia. Imenso, o livro se encontrava aberto em um ponto com páginas douradas, e o cuidado com a elaboração deixava a gente a imaginar as outras folhas. Eu me perguntei quantos dias devem ter se passado para se fazer apenas aquela página. Um dia, dois, uma semana? E o livro todo? Meu amigo riu e disse que “o tempo alí, não era a questão. O cara que fez não estava preocupado com isso.”. Na verdade, naquela época, o califa mantinha sobre contrato inúmeros iluminadores e calígrafos que se mantinham na tarefa contínua da elaboração dos livros. Meio assalariados e meio escravos, o tempo de suas vidas na terra se resumia a fazer aquilo, então o tempo de se escrever uma página, ou um livro, acabava sendo irrisório.

Mais tarde, com a devida cervejinha, e discutindo sobre a “paciência”, que eu acredito ser a pior das qualidades, voltei ao Corão dourado que vimos antes. Comecei a imaginar a situação dos Califas. Imaginei um Califa que olha por sobre o ombro do calígrafo e pergunta: “Então camarada, quando fica pronto?” e o pobre iluminador só pode dizer: “Tenha paciência, ò Califa! Um dia terminarei.” e dez anos se passam, e então o Califa um dia abre o livro, folheia as páginas douradas, e diz: “Está Lindo!”. Vejam só! A paciência de dez anos recompensou o Califa com o prazer de um momento, e claro, com todos os outros momentos que voltasse a ter o livro às mãos. Eis a recompensa!

Depois imaginei outro Califa! Esse é diferente do primeiro. Olha também sobre o ombro do artista, mas ao invés de repetir a pergunta do anterior, vê o calígrafo desenhar sobre a folha dourada com cuidado e exclama “Está ficando lindo!”. Fazia amor com aquilo e após dez anos acompanhando o quão bonito ficava o livro, quando este estava terminado, abria e vivia em um único momento, os dez anos de beleza e amor que acompanhou na sua feitura.

A diferença entre os dois Califas, é que enquanto o primeiro teve a paciência de dez anos pela beleza do momento, o outro viveu em delícia os mesmos dez anos e depois, contemplando o livro, acabava por reviver os dez anos em um único momento.

Glauber acha que eu faço confusão semântica, confundo paciência com espera. Ele entende a “paciência”, como “paz ciência”, ou “ciência da paz” e assim a paciência seria plenamente aplicável ao caso do segundo Califa. Pode ser...

E onde entra o cinema nesse Califado todo? Assisti a uma entrevista do Arnaldo Jabor, que coincidentemente tem ascendência no povo daquela região, sobre o seu filme novo e ele reclamava que uma coisa que o tinha feito deixar de fazer cinema era o tempo de quatro anos para se fazer um filme. Ele disse que passou 24 anos sem fazer filmes. Tirando os quatro anos do pós EMBRAFILME, quando ninguém fez cinema, foram 20 anos de abnegação na recusa de fazê-los simplesmente por demorarem tanto tempo a serem feitos. 20 anos... Davam para ter sido feitos 5 filmes... e dizem que esse último é muito bom.

Livros perdidos no incêndio do palácio do Califa fazem falta. Ainda bem que calígrafos e Califas não pensavam sobre o tempo que se passava para se fazer um livro, ou então eram pacientes, seja ao estilo de nosso primeiro Califa, seja ao estilo do segundo. Tudo isso para dois cearenses olharem duas páginas por um vidro, e discutirem sobre a paciência, enquanto tomam cerveja.

Felizes somos nós.

Heraldo Cavalcanti

P.S.: Para entender melhor esse universo de Calígrafos e Califas, recomendo a leitura de “Meu Nome é Vermelho”, de Orhan Pamuk, prêmio Nobel de literatura e um de meus autores preferidos.